Noite de quinta-feira
sem convites para farra, nem mesmo o desejo de uma orgia me faz
pensar em sair de casa e encontrar pessoas capazes de estragar
completamente um dia como esse de quase tédio, mas sem marasmo, pois
pude manter minha mente ocupada em algo muito importante. O calor
absurdo do quarto não combina com o conhaque sob a cama. A TV não
aparece como uma distração e sim como um inimigo dos pensamentos
vagos sobre a noite, o dia seguinte e as possibilidades. Esvazio mais
uma garrafa de água, é a segunda do dia. Possibilidades... assisto
vários filmes.
O sono não dá sinal.
Pego o ventilador, mais uma garrafa de água, uma dúzia de spams e
assim como decidira ficar em casa resolvi sair para dar uma volta com
Conhaque, que segundo a esposa de meu irmão havia ficado louco
quando eu viajei, como, segundo ela, costuma ficar sempre que eu
passo muito tempo longe. Pobre cão. Eu tenho sido um péssimo amigo
ao longo dos seus inacreditáveis 4 anos. Ele já é um adulto faz
tempo, mas parece ainda um filhote, um fanfarrão. Passear com ele à
noite pelas ruas desertas de Pericity é um dos meus sonambulismos
preferidos.
Os cães tem a
capacidade de perceber a chegada de uma pessoa querida, e outros
cães, a grande distância, não sei se pelo cheiro, ou pelos passos
conhecidos, parece mais uma premonição. Eu posso perceber quando
algum cão está dirigindo a mim seus latidos. Depois de um beck a
minha sensibilidade aumenta, minha e deles quanto à minha presença,
e disparam a latir quando eu passo. De alguma maneira eu percebo que
seus latidos não são de ira, soam como uma saudação: “sou tão
canino quanto eles, isso é o que eles veem”, foi o que eu vim a
concluir.
Outro dia, voltando de
bike pela estrada velha, ouvi uma cadela despencar de uma laje depois
de ter latido para alguém que eu não sei se era eu, mas ainda pude
vê-la se levantar do tombo e tomar a direção de casa. Entristeci.
Ela deve ter se machucado e talvez até morrido depois. Alguns
animais não conseguem compreender o que é uma pessoa andando de
bicicleta, eles apenas notam o deslocamento estranho e a
limitação de movimentos, não sei se sabem, mas alguns animais
vivem exclusivamente desse tipo de observação, e, como toda
observação, depende dos olhos. Aqueles que não enxergam bem
perseguem os veículos. Possivelmente aquela cadela também tinha
problemas de visão.
Com Conhaque eu não
chamo tanto a atenção dos outros cães, pois o bonitão é o rei da
rua. Ontem ele pôde ficar sem a guia pois não se via viva alma.
Andamos calmamente, ele à frente conferindo cada poste, cada
amontoado, cada portão, é incrível como ele é incansável, com
dois palmos de língua para fora o tempo inteiro indo e vindo de um
lado para o outro. Às vezes entra numa rua errada e eu o chamo,
vem virado na zorra, passa direto por mim, e recomeça o trabalho de
vistoria carimbando tudo com seu mijo infinito. Um rolé básico
passando pela praça do sol (os “homi” lanchavam em frente ao
campo do baba, por isso nada de bufus na praça), pegamos o rumo do
canal do Paraguari até a cocheira, de volta dessa vez pelo outro
lado do rio. Um sacizeiro ali, uma puta louca acolá, alguns cães
sem dono e uma “lua smile” foram nossos únicos companheiros
nessa caminhada brisótica. Na volta pra casa, mais uma passada pela
praça do sol, indo até perto da 5ª delegacia e pegando a rua que separa a
malhada da urbis. Próximo ao fim de linha nos deparamos com um
doidão de bike e uma matilha que guardava seus donos de rua.
Entrando em “minhas quebrada” eu podia ouvir o latido de cada cão
da redondeza. Todos nos latiam.
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