sexta-feira, 14 de março de 2008

Desgraciosidades infantis

Pra quem não sabe eu sou um menino do interior criado no subúrbio. Quando vim para Periperi mais da metade das ruas não tinham asfalto e boa parte delas ainda era um imenso brejo que estava sendo aos poucos aterrado. Haviam palafitas, camas d’água e muita área verde. Num lugar desses o que não falta é aventura pra uma criança “criativa”.
Lembro bem de algumas coisas de minha infância. Lembro das muitas armas que utilizávamos para caçar, pássaros, sapos, lagartixas, ratos ou até mesmo uns ao outros. Com a arma certa havia sempre motivos para se atirar em alguém. Às vezes usávamos nossas armas nas guerras que fazíamos com bonecos (comandos em ação, playmobil, forte apache, guliver... o que fosse).
Minha arma favorita era o badogue¹. Eu era realmente muito bom. Conseguia acertar em uma mosca num talo de cocó². Na verdade a gente nunca sabia se eu acertava mesmo porque nunca encontrávamos os corpos no esgoto.
Fazíamos armas com quaisquer coisas: tubos, elásticos, borrachas, arame, pedaços de pau etc. Tinha uma “espingarda” que era feita com elástico(desses que as meninas brincavam de Ôno-um³), um pedaço de pau(que normalmente vinha do lastro da cama de alguém), um prego e um prendedor de roupa. O prendedor de roupa servia de gatilho e também segurava a bala, que normalmente era uma tampinha de garrafa (das garrafas de vidro, ainda nem existiam garrafas tipo pet.). Essa espingarda a gente usava para fazer guerra entre nós e eram sempre batalhas maravilhosas quando conseguíamos juntar uma galera.
Tinha uma “arma” que era apenas uma borracha dessas de enrolar dinheiro. A munição eram ganchos de arame e caçávamos sapos nos esgotos do bairro ainda sem saneamento. Com essa arma eu não brinquei muito, porque quase acertei meu próprio olho, aí fiquei meio “nas cocó”4.
Mas o que eu era pirado5 mesmo era com o badogue. Não podia passar por um araçazeiro sem observá-lo bem para ver se havia uma boa forquilha, pois, segunda a lenda, são as melhores para um bom estilingue.
Apesar de eu ser muito bom com ele, nunca conseguia acertar um passarinho, mas ratos, lagartixas e sapos eram exterminados sem piedade. Uma das poucas vezes que eu consegui acertar em um foi em Santo Amaro e era um Sangue de Boi ainda filhote, já grande, mas ainda filhote. Por sorte eu não o matei e pude pegá-lo para criar. Ele ficou aqui em casa por vários meses até que um belo dia alguém deixou a gaiola aberta e ele foi brincar com o cachorro que o espedaçou. Só encontrei o resto do seu corpo sendo devorado pelas formigas. Enterrei-o e nunca mais brinquei de atirar em passarinhos.


Glossário
1 – Bodoque, estilingue
2 - uma espécie de planta do brejo que deve ter um outro nome qualquer, mas a gente chamava assim.
3 - brincadeira de crianças do sexo feminino.
4 - (na crocodilagem) expressão que quer dizer desconfiado.

5 – fascinado.

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